O foco da missão


Ao lermos o texto sobre a cura de um leproso (Mc 1.40-45), somos impactados pelas idéias e palavras relacionadas a esse evento. Creio que os gestos falam por si: “Jesus estendeu a mão e o tocou”. Outro movimento de impacto é o gesto do leproso ao pedir de joelhos: “Se quiseres...”. Há grande coerência entre a linguagem verbal e a linguagem corporal. Depois de curá-lo, Jesus o despede e lhe pede que não conte a ninguém. Incrível esse pedido de Jesus, pois para aquele homem seria quase impossível não divulgar uma experiência de transformação como essa. Esse milagre — como os outros — é a manifestação do poder de Deus. É um sinal de que o reino chegou por meio de Jesus. Estamos diante de um fato extraordinário que confirma o anúncio: o reino de Deus já chegou em palavra e ação.

O Evangelho de Marcos enfatiza as ações de Jesus e não tanto os seus ensinamentos. Um aspecto importante da missão de Jesus é a integração entre a palavra e a ação. Estas chegam juntas como sinais visíveis da nova realidade trazida pelo Messias. Além disso sua prática de missão traz um elemento de surpreendente novidade, pois mostra aqueles que estão à margem da sociedade como centro de sua preocupação e atenção. Quando começou a atuar a partir da periferia Jesus fez uma opção que criou um paradigma. Os que estavam ali eram o centro de sua missão.

Muitas vezes nossa prática de missão possui um foco inadequado. Quando não estamos olhando da mesma forma (e na mesma direção) que Jesus, para quem a periferia é parte do seu centro de preocupação e ação missionária, caímos na armadilha de considerar como centro de nossa missão aquilo que nos leva para: o centro da fama, do poder e das expressões humanas de glória. Neste caso, nossa prática de missão reforça o modo de pensar vigente, adotando como foco aquilo que o mundo considera o centro e excluindo aquilo que o mundo considera periferia. Jesus tem um foco ampliado, em que a periferia também está no centro de sua missão.

Como trabalhar com essa perspectiva numa geração que tem como centro seu próprio umbigo, que quando levanta a cabeça vê o aeroporto como opção de saída, a tão sonhada América, o Primeiro Mundo? A grande ironia é que, enquanto olhamos os aviões, não damos atenção às casas ao redor do aeroporto, onde as pessoas não vivem como deveriam viver.

Outro elemento fundamental em nosso foco de missão é a maneira como a tornamos real; o nosso jeito de fazê-la. Este encontro de Jesus com o leproso nos indica aspectos importantes sobre a maneira como podemos realizar nossa missão. A lepra, na Bíblia e na cultura antiga, representa uma série de doenças cutâneas pelas quais os judeus sentiam aversão. Vinha acompanhada de uma impureza cerimonial que classificava a pessoa como imunda; e por ser imunda ela sofria as conseqüências em três dimensões: primeiro, era retirada da vida em sociedade; segundo, era impedida da presença de Deus no templo porque não podia conviver com seus compatriotas naquele recinto; e finalmente levava sobre si o estigma de ser imunda, contagiosa. Isso não mudou muito em nossos dias. Vivemos numa sociedade que continua produzindo “excluídos”, “leprosos”, todos aqueles que representam algum tipo de risco e incômodo.

Alguns manuscritos gregos dessa passagem bíblica dizem que Jesus se enche de raiva quando vê tal situação. Uma possível explicação para isso seria a revolta por ver todo o mal que se pode fazer a uma pessoa, transformando-a em uma não-pessoa. Tal situação o ofende, o irrita. Por isso, quando cura esse homem Jesus o adverte que volte ao templo e dê testemunho de sua sanidade, como forma de anúncio a um sistema social e espiritual que não promove a cura, somente declara quem pode participar — ou não — da vida social. O leproso se transforma em testemunho vivo de que Jesus estava fora da cidade, à margem da sociedade, mudando o centro de referência. Da periferia vem a boa nova de redenção; foi na periferia que Jesus o encontrou e curou.

Não poucas vezes, quando um irmão compartilha uma necessidade, tem por resposta o silêncio das “mãos recolhidas”. Ninguém se mobiliza em seu favor. Dizemos ter muita compaixão, mas o tipo de compaixão que “espiritualiza” a pessoa e o seu problema, fazendo-nos ver este problema de forma equivocada uma vez que não compartilhamos do realismo apresentado pelo Messias. Jesus fala, toca e lhe dá atenção. Estes três elementos — falar, tocar e dar atenção — são fundamentais, e, quando não são considerados, levam à formação de uma massa de excluídos e marginalizados.

Jesus fez assistencialismo ou produziu desenvolvimento? O que ele fez foi uma mudança profunda. Uma pessoa considerada não-produtiva tornou-se novamente produtiva. Imaginemos o significado disso. Um homem desempregado agora pode voltar a ser empregado e a ter recursos para manter sua família. Isso influencia sua qualidade de vida; é uma mudança radical. Nesse sentido, cabe destacar a diferença entre assistência e assistencialismo. A assistência não é má em si mesma. Há situações que exigem assistência mais do que palavras. Já o assistencialismo não vê além da necessidade e, portanto, não almeja nada mais.

Chegamos ao terceiro ponto, que é a observação dos possíveis modelos de missão que surgem do falar, tocar e dar atenção. Jesus restaura o leproso por sua compaixão, por seu poder e de forma plena. Restaura sua saúde física e o reintroduz à vida da comunidade, eliminando, assim, seu sentido de abandono. Jesus permite ao leproso recuperar sua auto-imagem, dando-lhe saúde emocional. E confirma a sua fé, restaurando-lhe o acesso ao templo e a comunicação com seus irmãos.

O modelo concreto que temos aqui parte do fato que Jesus exerce sua compaixão ao falar-lhe, tocar-lhe e dar-lhe atenção. Uma compaixão como a de Jesus nos liberta dos preconceitos e nos faz perceber a degradação, a morte espiritual e física dos excluídos. É uma compaixão que não se deixa enganar por essa primeira percepção, mas vai além, reconhecendo em cada criatura o valor de ser imagem e semelhança de Deus. Quando olhamos com compaixão, não vemos somente como o outro está, porém somos capazes, também, de perceber como ele poderia (ou deveria) estar.

Essa compaixão de Deus por todos não nos permite fazer opções exclusivistas e seletivas, que nos levem a um ministério tranqüilo. Nosso foco de missão deve ser tão abrangente como o de Jesus, senão podemos cair na armadilha da comodidade. É muito atraente evangelizar os segmentos socias formados por aqueles que não bebem de maneira escandalosa, não fumam, não jogam e, além disso, são grandes “amigos” do evangelho (e ainda podem dar “boas” ofertas). Existem muitas pessoas materialmente privilegiadas vivendo alguma forma de exclusão e sofrimento. Mas tenho observado que os ministérios direcionados a esses privilegiados, com o tempo, correm sério risco de se amoldarem à mentalidade burguesa. Com isso, diminuem o seu foco de missão e acabam por fazer uma opção preferencial invertida (para recordar o famoso debate da década de 70 e 80 sobre a opção preferencial pelos pobres).

Tudo isso pode levar a uma prática de missão que não desafia os ricos e que acaba por acariciar suas consciências. O mesmo risco de acomodação ameaça os ministérios dirigidos aos pobres em que a preocupação maior não é o serviço real e a proclamação das boas novas, mas sim a publicidade que busca legitimar seu apelo e suas práticas ministeriais. Nesse sentido, tais ministérios usam os pobres. Há problemas nas duas direções. Não temos outra opção senão proclamar o Evangelho todo para o ser humano todo, homens e mulheres.

Precisamos nos perguntar sobre os desafios que esses três elementos do foco da missão nos apresentam. Quantos ministérios de consolação podem nascer pelo “falar”? Aqui está a consolação, a proclamação e a presença profética. Quantos podem nascer pelo “tocar”? Quantos podem nascer pelo ato de dar atenção, abrindo espaço para aqueles que “não são”? É por isso que falamos de muitos modelos de serviço que podem nascer destas três perspectivas.

Pensemos em nós mesmos, em nossa própria vida. Quando nos voltamos para os excluídos, foco de nossa missão, começamos a descobrir em nossa própria vida áreas que estão marginalizadas, isoladas, excluídas, esquecidas e enterradas. Então descobrimos que nós também precisamos do toque curador do Senhor nessas nossas “lepras”. Carecemos desse toque para podermos olhar com compaixão, que nos leve a trabalhar com outro foco. Um foco mais preocupado com a periferia e com a inclusão, numa prática criativa e responsável com nossos modelos de serviço.

Nossa geração sofre uma crise profunda entre o que vê e o que deseja. O mal “prospera”. E, devido ao conceito de fé que manejamos, não conseguimos ver além dessa realidade. Assim, corremos o risco de nos tornar cínicos, dizendo: “Se aqui estão os fracos e ali os fortes, vou com estes últimos”. Uma geração pragmática e hedonista não achará que valha a pena falar dos e aos excluídos. Diante disso, devemos ter cuidado com o foco de nossa missão. Será que estamos sendo influenciados pela corrente de nosso tempo, esquecendo-nos do sacrifício que a missão implica?

Todo cristão é chamado à missão. Ela é nosso estilo de vida. Portanto, não se trata só de ser sacrificial na missão, mas sim de ser sacrificial na maneira de viver. Não se trata de nos acomodarmos a este século, mas sim de nos mantermos fiéis ao chamado, ainda que não venhamos a ser famosos ou aceitos. Isso não quer dizer que devemos negar a dimensão do prazer e da alegria na prática de nossa missão, como diz o autor de Eclesiastes. Precisamos ensinar a festa aos que não têm festa e a fé aos que não têm fé. Integrar fé e festa, criando experiências de intercâmbio, colocando-nos em situações vivenciais que ampliem nossa visão e nosso serviço, para a glória de Deus.


Ziel Machado é pastor da Igreja Metodista Livre e trabalha há 25 anos no ministério estudantil. É secretário da CIEE para a América Latina.