Transformando a sociedade a partir da igreja local


Encontro de Filiados RENAS, São Paulo, 26/03/10 Atos 17.1-9

“Estes que têm transtornado o mundo chegaram também aqui” (v. 6b). Foi esta a denúncia sofrida pela igreja em Tessalônica perante as autoridades da cidade. Os perseguidores procuravam especialmente Paulo e Silas, que estavam há pelo menos 15 dias na cidade proclamando o evangelho e, consequentemente, subvertendo a (des)ordem religiosa, social, econômica e política. Porque é isso que provoca a mensagem de Cristo: radical e ampla transformação. Não encontrando os dois missionários, os acusadores judeus conduziram Jason e outros irmãos da igreja nascente em Tessalônica às autoridades.

Algumas perguntas nos ajudam a aprofundar o entendimento do texto.

1. QUEM SÃO “ESTES”?

Estes são aqueles que, alcançados e transformados pela mensagem de Cristo, tornaram-se testemunhas, no discurso e na prática, do evangelho integral. São aqueles que, a partir da experiência transformadora da igreja em Antioquia, foram chamados de cristãos. São homens e mulheres, adultos e crianças, tanto judeus quanto gregos, além de outros povos do contexto geográfico do Império Romano. São os seguidores de Jesus com uma postura não passiva da fé e uma experiência religiosa que muda não apenas o coração. São os que têm uma visão transformadora e renovada da vontade de Deus, tanto pessoalmente como para todas as dimensões da vida em sociedade e cultura. São estes, portanto, os acusados.

2. QUE TEM TRANSTORNADO O MUNDO... Que transtorno é esse? Qual é a natureza da acusação que recai sobre estes cristãos? Qual a dimensão dos transtornos provocados por esta igreja de Cristo?

O cerne da causa destes transtornos é a aceitação de Cristo como Salvador e Senhor por parte das pessoas. E sua nova prática de vida desdobra-se num inevitável confronto com a (des)ordem social e cultural, pois eles compreendem a necessidade de serem sal da terra e luz do mundo, efetivamente, para que toda a ordem decaída, desde o advento do pecado de Gênesis 3, seja transformada e submeta-se ao mando e governança de Cristo. Para o bem de toda a criação.

De fato, a acusação era procedente e verificável. Eles de fato estavam transtornando o mundo. A igreja nasce como um espaço de contracultura e produz verdadeiras transformações. E estes transtornos podem ser identificados de várias maneiras, mas destaco aqui apenas três dimensões:

- Transtorno do poder religioso (At 17.1-5)

Muitos são os exemplos de pessoas alcançadas pela graça redentora do evangelho que experimentaram uma nova vida e agora causavam furor naqueles que viviam do poder religioso estabelecido. (At 2. 37-43; 4.31). As pessoas mudavam de vida e passavam a se guiar pelo Caminho que é Cristo, com todas as implicações que isto significa.

- Transtorno do poder político – (At 17.6-8).

Os cristãos passam a reconhecer, agora, de fato, somente Deus e sua vontade como última autoridade. Somente Jesus Cristo é o Senhor. Pedro e João já haviam afirmado que “importa antes obedecer a Deus”. Todas as perseguições que seguiram sob Nero, Diocleciano e todos os imperadores romanos até o final do terceiro século, diziam respeito aos “problemas” causados pelos cristãos em confronto com a (des)ordem injusta e perversa. Por exemplo, a questão da escravidão. O Império vivia e lucrava economicamente com a estrutura da escravidão. Mas os cristãos estabeleceram comunidades livres em que o direito de todos era igualmente reconhecido.

- Transtorno do poder econômico (At 19.23-41)

Aonde os cristãos chegavam, com uma nova visão de como deviam viver amplamente a fé em Cristo, inclusive nas relações econômicas, causavam transtornos para todos quantos se aproveitavam de estruturas comerciais e de trabalho desumanizadoras. Como no exemplo paradigmático da cidade de Éfeso, cuja deusa Diana, supostamente ajudarora das pessoas, é desmistificada como um instrumento de engano e, portanto, de opressão, não de libertação e plenitude de vida. Tal compreensão desencadeou denúncias e perseguições contra os cristãos, chegando quase a linchamentos físicos, por incitação de fabricantes e comerciantes de ídolos, dentre outros.

Muitos outros transtornos podem ser citados: espirituais, físicos e sociais (At 2.42-47; 3.1-10; 5.12-16; 4.32-35); como também a construção de uma estrutura de assistência social para a comunidade, tanto da igreja como de fora dela (At 6.1-7))

Na verdade, os transtornos que os cristãos causavam em nome e pelo poder de Jesus eram vistos como problemas para os que se locupletavam com os poderes político, econômico, religioso, mas para aqueles que experimentam estas mudanças, isso era, de fato, o desfrutar da nova vida que o evangelho produz. As coisas antigas passavam e agora tudo se fazia novo.

A IGREJA VERDADEIRAMENTE AGIA COMO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE.

Estes que têm transtornado o mundo. A igreja que se dispersa a partir de Jerusalém alcançou em pouco tempo todo o mundo conhecido, tanto em sua dimensão geográfica, conforme o mandado de Mateus 28.19 e Atos 1.8, quanto em seus aspectos religioso, social, econômico e cultural. Uma igreja sem muitos recursos, sem templos, mas que ao final do segundo século, contava com cerca de 500 mil cristãos na área do Império Romano.

ELES CHEGARAM TAMBÉM AQUI... Os discípulos foram a todas as partes e firmaram comunidades cristas que mudaram a face do mundo antigo.

Esta expressão – “Eles chegaram também aqui” – pode ser também entendida como uma exclamação de desespero dos acusadores: “Eles chegaram também aqui. Foi-se nosso sossego, nosso bem estar...”. Entretanto, ao conhecerem efetivamente o evangelho de Cristo, mudavam de vida e transformavam as estruturas injustas e perversas de seu contexto. Pois a mensagem de Cristo produz verdadeira redenção e dignidade para todos.

Mas todos estes transtornos, que são na verdade bênçãos efetivas do Senhor para a vida das pessoas e das sociedades, não aconteceram sem transtornos, para os cristãos. Muitas foram as perseguições, violências e mortes sofridas pela igreja. Alguns exemplos: Pedro e João presos e no Sinédrio (At 4. 1-22), apedrejamento de Estevão e também de Pedro (At 14.19ss), a prisão dos apóstolos (At 5.17-42), Paulo e Silas açoitados (At 16.19).

Conclusão

1. “Estes...”. Quem somos nós hoje? O significa nossa identidade de cristãos? Como a sociedade nos vê?

Precisamos desconstruir o que significa ser cristão hoje para muita gente, tanto dentro quanto fora do ambiente da igreja, para que possamos reconstruir nossa identidade à luz do evangelho de Cristo, a exemplo dos primeiros cristãos. Muito da identidade do que a igreja julga ser cristão, precisa ser transformado para se resgatar o sentido do seguimento a Jesus. O “Estes” hoje está domesticado, as vezes secularizado, quando não alienado da identidade de Jesus, a quem afirmamos, verbalmente, seguir e servir. (Lembremos o exemplo corajoso e contundente de Luther King...).

2. Estes que têm transtornado o mundo, os seguidores de Cristo devem formar a igreja do transtorno, a igreja que contraria, contrapõe e depõe as estruturas injustas. Estas produzem erro, maldade, engano. É relativamente fácil ir contra aquilo que é explicitamente oposto à vontade de Deus. No entanto hoje, no contexto mais amplo da sociedade e no ambiente micro da própria igreja, identificar e desmistificar os agentes enganosos e falaciosos que se dizem do Reino de Deus é tarefa difícil e arriscada.

A igreja é convidada e convocada a assumir sua missão de transtornar o Brasil e o mundo. A partir de nossas comunidades locais, dos espaços em que vivemos, alterando os indicadores sociais injustos, as políticas que não produzem vida e bem-estar para todos. Pensar global e agir local... (At 1.8).

É convocação para, em parceria com entidades evangélicas e outros atores sociais comprometidos com a justiça, transtornar as estruturas legais, nem sempre éticas, para maior efetivação da justiça.

E, finalmente, é preciso que o evangelho continue a transtornar a nós mesmos, nossas estrutruras, nossa religiosidade, nossa teologia, nossa eclesiologia, nossa liturgia, nossa diaconia, muitas vezes voltadas para nós mesmos, para que produzam justiça para fora. E as pessoas vejam as nossas boas obras, em nome de Cristo, e glorifiquem a Deus Pai que está nos céus e entre nós.


Clemir Fernandes